Resenha: Um Cântico para Leibowitz - Café & Espadas

19 de dezembro de 2014

Resenha: Um Cântico para Leibowitz

Título – Um Cântico para Leibowitz
Título Original - A Canticle for Leibowitz
Autor – Walter M. Muller Jr.
Páginas – 399
Editora – Aleph

Sinopse

Após ter sido quase aniquilada por um holocausto nuclear, a humanidade mergulha em desolação e obscurantismo. 


Os anos de loucura e violência que se seguiram ao Dilúvio de Fogo arrasaram o conhecimento acumulado por milênios. 


A ciência, causadora de todos os males, só encontrará abrigo na Ordem Albertina de São Leibowitz, cujos monges se dedicam a recolher e preservar os vestígios de uma cultura agora esquecida. 


Seiscentos anos depois da catástrofe, na aridez do deserto de Utah, o inusitado encontro de um jovem noviço com um velho peregrino guarda uma surpreendente descoberta, um elo frágil com o século 20. 


Cobrindo mil e oitocentos anos de história futura, "Um cântico para Leibowitz" narra a perturbadora epopeia de uma ordem religiosa para salvar o saber humano. Marco da literatura distópica e pós-apocalíptica, vencedor do prêmio Hugo de 1961, este clássico atemporal é considerado uma das obras de ficção científica mais importantes de seu tempo.

Durante toda a minha vida, sempre ouvi a história de que após o grande dilúvio narrado na bíblia sagrada, Deus havia feito uma aliança com os homens dizendo que nunca mais voltaria a acabar com o mundo por meio de enchentes, chuvas incessantes, tsunamis... Enfim, água. E que o próximo “fim do mundo” seria feito com fogo, e a face da Terra seria transformada em um verdadeiro inferno, exterminando a raça humana e qualquer outra forma de vida.

Não sei se essa visão é teologicamente correta, mas isso não é importante para o assunto que quero tratar aqui, a única obra do autor Walter M. Muller Jr. -  uma das mais relevantes para a ficção científica - onde ele monta toda a sua visão distópica sobre essa ideia de destruição da humanidade, mas com uma única diferença: o mundo como conhecemos não foi destruído pela mão divina, mas sim pelo próprio homem e sua megalomania.

Um Cântico para Leibowitz ganhou um dos prêmios mais importantes da literatura, o tão cobiçado Hugo em 1961 – um ano após sua publicação original – além de ser traduzido inúmeras vezes em vários idiomas. E não é para menos, o autor marcou a ficção científica do século XX com uma narrativa que acompanha a história de um protagonista incomum e seus milhares de anos de existência e influência na história da humanidade.

O mundo passou pelo Dilúvio de Chamas, um gigantesco cataclisma nuclear onde pouca coisa restou. Onde tudo voltou ao pó.

A parcela dos seres humanos sobrevivente passaram a conviver com as mutações e os seus filhos monstruosos, e à medida que o planeta se recuperava, os homens se reorganizavam como civilização. Mas isso não significa que necessariamente o mundo voltou a ser como era nos anos pré-Dilúvio.

Voltando a uma forma semelhante a pré-história em alguns aspectos, o homem retrocede, e se organiza em tribos e recria os tempos de barbárie, as crenças no sobrenatural por forma de rituais de ocultismo retornam a cultura e até mesmo a prática do canibalismo se torna comum. Mas a crença mais cultivada durante esse período é a de que qualquer forma de ciência é má e pode levar tudo à uma nova destruição.

Mesmo diante desse oceano de ignorância e má interpretação dos fatos históricos, surge uma ordem de monges que tem como única missão conservar todos os resíduos culturais e tecnológicos deixados pela antiga civilização, a fim de preservá-la para um futuro próximo – ou não – onde tudo possa ser reconstruído.

A obra é dividida em três partes: Fiat Homo, Fiat Lux, Fiat Voluntas Tua. Nesta primeira parte, temos a apresentação do protagonista desta “saga de um livro só”, a própria Ordem de Leibowitz. O livro irá abordar durante toda a sua narrativa, saltando séculos e mais séculos, os feitos da Ordem na tentativa de cultivar o conhecimento que quase foi completamente dizimado, e a relação da mesma com o mundo exterior aos muros da abadia. 

Fiat Homo traz um jovem noviço como o cerne do primeiro arco da história.

Irmão Francis almeja se tornar um monge, e uma descoberta preciosa feita por ele – e seu possível encontro com o próprio Leibowitz – põe em xeque sua confiabilidade, e testa sua fé até o limite. Nessa primeira parte do livro, temos os primórdios da Ordem, seus primeiros trabalhos em recolher registros antigos, copiá-los e traduzi-los.

A alegoria a “fé cega” e até mesmo um certo ceticismo partindo da Ordem com relação à própria ciência e aos achados feitos por Francis camuflam as verdadeiras intenções dos superiores do monastério para com a Nova Roma – o poder máximo da igreja. Esse é o ponto alto da primeira parte da história.

Francis é um personagem puro, que acredita piamente no seu chamado e no seu santo protetor. Como não haveria de ser, o autor usa essa característica do seu personagem para expor o embate entre a certeza do que não se vê e as provas sólidas. Um clássico embate entre o abstrato e o concreto.

Em Fiat Lux temos um avanço temporal de vários anos, e temos a Ordem diante de uma tensão entre os povos bárbaros e os exércitos dos grandes impérios surgidos a partir das poderosas cidades-estado.
Como o próprio título sugere, na segunda parte da narrativa temos a Luz do conhecimento irradiando-se com mais intensidade sobre as trevas do mundo – inclusive dentro do próprio monastério de São Leibowitz.

A obra apresenta um paradoxo cultural, manuseado de forma brilhante pelo autor: A igreja é responsável pela preservação da ciência, visto que durante a história antiga – ou Pré-Diluviana – as duas nunca andaram muito de mãos dadas. E isso logo se reflete internamente na Ordem, quando aos poucos a igreja começa a perder espaço dentro dela mesma, por mais ínfimo que seja, para a ciência e o progresso; despertando a ira dos religiosos mais fervorosos.

E finalmente em Fiat Voluntas Tua temos a Ordem alocada em futuro mais comum à ficção científica: naves voam pelo espaço, a raça humana almeja conquistar as estrelas, e mais uma vez temos a tensão de guerra. Começa com uma crítica severa ao homem pós-moderno e sua aparente descartabilidade e segue até a iminência de um novo Dilúvio de Chamas, e a perpetuação da Ordem em outros planetas, tudo envolto em muitos debates éticos e discursos de esperança.

Quando começamos a ler as primeiras páginas de Um Cântico para Leibowitz e a perceber as ideologias presentes nas entrelinhas sentimos o porquê desse livro ser considerado uma obra fundamental da ficção científica clássica. Dessas que fogem ao padrão de mercado, sem raças alienígenas invadindo a Terra, garotas tentando derrubar sistemas de governo e ação em frenesi ininterrupto.

O andar da obra é compassado, lento, alguns poderão dizer até maçante. Mas que casa com a atmosfera distópica de uma forma singular e ideal para a mensagem que ela tenta perpetuar.

Grande parte da narrativa se passa dentro da abadia de São Leibowitz. O cotidiano dos monges e suas práticas ecumênicas são descritos sem muitos detalhes, mas o autor consegue transmitir para o leitor todo o marasmo de um monastério. Por tanto, quem quiser enxergar a riqueza dessa obra deve enxergar além disso, e captar uma essência mais profunda.

A visão de Walter M. Muller Jr. é uma das mais pesadas e corroídas da sci-fi justamente por ela ignorar todos os benefícios que os avanços tecnológicos poderiam trazer, e mostra como a raça humana possivelmente nunca será plenamente desenvolvida, sempre voltando às trevas no final das contas.

O livro é repleto de subjetivismos e alegorias. A natureza - representada pelos lobos e os abutres, sempre mencionados durante a narrativa - somente observa o desenrolar dos acontecimentos, e cuida de limpar os restos de cada civilização que se ergue.

Os questionamentos de fé não se limitam ao campo religioso. A fé do homem em sua própria sociedade é testada constantemente, e é muito nítido que uma das melhores qualidades do livro são esses questionamentos que atormentam os personagens durante toda a obra.

Walter impregnou a sua história com medo. Um medo que para a época era terrivelmente compreensivo. Após o término da Segunda Guerra Mundial, o mundo entrou em um período muito obscuro e tenso, e Um Cântico Para Leibowitz é um reflexo daqueles dias, e uma visão pessimista – mas não menos realista – de um possível futuro, complementado com uma ótima escrita e um enredo atemporal, mas que não perde sua linearidade nem sua capacidade de se manter uma leitura atualizada e contemporânea.

Sem dúvidas, um livro para ler e reler. Mais que recomendado.


História
Escrita
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